sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Mosaico de verdades...




PROPAGANDAS ENGANOSAS

A verdade, como exata adequação entre o pensado e a realidade externa a que o pensamento se refere, é algo concretamente alcançável. Sempre que se fala em verdade (e, por contraposição, em mentira), vem à mente a velha indagação do juiz diante do réu excelso. "Quid est veritas?", teria indagado ele, segundo a versão corrente, que supõe tivesse o diálogo sido travado em latim, certamente sem legendas. E todos nós, certamente, em muitas ocasiões nos fizemos essa mesma pergunta, mesmo sem que tenhamos de entrar no perigoso campo da religião.

Muitos imaginam, por exemplo, que a finalidade do processo judicial seja a busca da verdade real, o que também parte de uma suposição que a muitos não ocorre: cuida-se, no processo, de reproduzir algo que existiu e, na mor parte das vezes, não mais existe, a não ser em raríssimos casos, onde é possível detectar a flagrância do fato em sua mesma ocorrência. Entretanto, o Calamandrei nos relatava que, havendo presenciado um homicídio, ficou horrorizado com a brutalidade do assassino. Foi só os policiais botarem algemas no homem e ele passou a horrorizar-se com a brutalidade dos policiais. O flagrante, convenhamos, é exceção, coisa rara, pois o que se tem, no geral, são pessoas, documentos e opiniões com que os interessados buscam, qual numa tela de mosaico, reproduzir uma pálida imagem de algo que já não há.

Figure-se a hipótese de um réu denunciado por triplo furto: a carteira de A, o relógio de B e a caneta de C. O juiz dá por provados os três fatos e o condena por furto em concurso material, pois são vítimas e circunstâncias diversas. Temos aí a opinião de uma pessoa respeitável. Recorre o defensor e o caso passa a ser julgado por três juízes. O primeiro entende que a prova do furto da carteira é robusta, o que não ocorre em relação aos demais objetos; o revisor, ao contrário, entende frágil a prova quanto ao furto da carteira e da caneta, mas entende suficiente a prova do furto do relógio. O vogal, por seu turno, discorda de ambos: o fato que está provado acima de qualquer dúvida é apenas o que diz com a caneta de C.

Temos, portanto, três experientes juízes de um tribunal, mais aquele quarto que assinara a sentença, afirmando que aquele réu é um ladrão. Qual, então, será a pena que nele deverá ser aplicada? Simplesmente nenhuma, pois não havendo dois votos a favor de alguma das três teses, esse réu deverá ser absolvido. Para cada afirmação da existência de um dos crimes há duas negações de sua existência.

Eis aonde chega a verdade processual: quatro juízes afirmam que alguém é um ladrão e esse réu, por motivos formais, vem a ser absolvido, para escândalo dos leigos! Ubi veritas?

Fora do campo criminal, impressiona-me a facilidade com que certos personagens pontificam sobre determinados assuntos. Quando uso a palavra personagem aqui quero referir-me a certas figuras que os meios de comunicação nos tornam familiares. Tão familiares que fazem o que os publicitários chamam de testemunhais. Realçam as qualidades de certo produto ou determinado serviço.

Exemplifico: quem é Pelé? Ele, a rigor, não existe. É apenas o personagem criado pelo cidadão Edson Arantes do Nascimento. E a personalidade desse personagem é tão marcante que o próprio Edson não se refere a si próprio, em determinadas situações, mas ao "Pelé", seu alter ego. A famigerada lista da FIFA, sobre os melhores futebolistas vivos, por exemplo, não foi elaborada por Pelé, mas pelo Edson, que não entende nada de futebol.

E há os atores que, pelos mais variados motivos, em lugar de usarem seu nome de batismo, valem-se de um nom de guerre. Quantos telespectadores saberão quem foi Pelópidas Guimarães Brandão? Ou quem é Ariclenes Venâncio Martins? Imagine-se então que Paulo Gracindo tivesse sido convencido a tentar convencer telespectadores a aplicarem seu numerário em boi gordo, ou em porcos gordos, ou frangos gordos. Claro que o Paulo Gracindo receberia polpuda soma em dinheiro para tal missão, a ser desempenhada pelo seu personagem. Imagine-se, apenas se imagine, que aquilo era uma vigarice, que tal investimento e os lucros anunciados fossem claramente irreais, donde o prejuízo dos que acreditaram no personagem. Ora, se o empregador (outrora se dizia "patrão, amo ou comitente") responde pelos atos danosos causados pelo empregado, mesmo sem demonstração de culpa, em nome de que princípio ético se sustentará que a pessoa física Pelópidas Guimarães Brandão não deva responder pelos atos praticados por seu personagem Paulo Gracindo?

Imagine-se que Lima Duarte buscasse, mediante robusta remuneração, convencer telespectadores a experimentarem cigarros de determinada marca. Levados pelo poder indutor do personagem, número incalculável de pessoas acabariam contraindo câncer, como demonstram as estatísticas que efetivamente ocorre em tais casos. Repete-se a pergunta: em nome de que argumento ético Ariclenes Venâncio Martins se safaria de uma acusação de responsabilidade pelo ato de seu personagem Lima Duarte?

Dizem que a propaganda é a arte de fazer alguém comprar algo de que não precisa por um preço que não pode pagar. Quando um Zeca Malandrinho qualquer resolve expor à luz do dia isso que todos sabemos, vendendo sua imagem para convencer alguém a beber isto hoje, aquilo amanhã e, certamente, outra bebida na semana que vem, dependendo de quanto lhe paguem, eriçam-se pelos, rangem dentes, clamando por um código de ética mais rigoroso. Como se a publicidade tivesse compromisso com a verdade. Ou você acredita que o Ronaldinho acerta a trave com a bola e faz esta retornar depois a seu pé, como se estivesse jogando bilhar?

Pois que se leve a ética às últimas consequências: quem se disponha a colocar sua imagem pública a serviço de um produto ou um serviço, a peso de ouro, que tenha a responsabilidade de certificar-se se o produto ou o serviço anunciados têm efetivamente as qualidades anunciadas. Caso não, que sejam responsabilizados civilmente não apenas o fornecedor, mas também quem se prestou a intermediar a relação entre a fonte de produção e o consumidor.

Do jeito como as coisas estão, acho que poderíamos dizer: Quanto custa fazer propaganda de cerveja, de cigarro, de banco, de automóvel? Alguns milhões de dólares. Responder pela qualidade daquilo que eles anunciam? Isso não tem preço.

Autor Adauto Suannes - publicado hj no site migalhas

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