Eu, Juiz de Direito, confesso...
Gerivaldo Alves Neiva*
Esta confissão tem três inspirações: o Juiz de Direito Rosivaldo Toscano Jr, o Defensor Público Rafson Ximenes e Sigmund Freud. Ele mesmo! Calma, gente... Vou explicar.
Pela primeira vez, em mais de 20 anos de magistratura, li um texto em que um Juiz de Direito comenta sobre seus próprios erros e arrependimentos. Este texto é do Juiz Rosivaldo Toscano Jr, do Rio Grande do Norte, e está publicado em seu blog na Internet.[1] De forma sincera e real, Rosivaldo concluiu: “somente os juízes absolutamente inexperientes não tem seu rol secreto de arrependimentos. E para alguns, inconfessáveis até para si próprios.”. Acredito que nenhum Juiz passa incólume por este texto. A menos que não se imagine humano. Nem precisa que seja “demasiadamente humano”. Eu, por exemplo, que sou apenas humano, depois da leitura, puxei um imenso rol de arrependimentos pelo que fiz e pelo que deixei de fazer nesses mais de 20 anos de magistratura.
Na verdade, ingressei na magistratura da Bahia em 1990 e imaginava, depois de 06 anos de advocacia, que estava absolutamente preparado para ser Juiz de Direito. Ledo engano. Hoje sei que sabia muito pouco ou quase nada sobre a vida e sobre o Direito. Para comprovar isso, depois de muitos anos retornei à minha primeira Comarca (Urandi, no sudoeste da Bahia) e lá conversei com um advogado da mesma época (Dr. Caio Leão) e ele me fez elogios sobre minha atuação na Comarca. Respondi ao advogado que, de fato, tinha feito tudo com muita dedicação e zelo, mas que somente agora – na época, 10 anos depois de ter saído de lá – me sentia preparado para assumir uma Comarca. São passados mais de 10 anos desse episódio e continuo pensando que somente agora estou preparado para assumir minha primeira Comarca. Neste caminhar, não sei o que estarei pensando com mais 10 anos de magistratura...
Com relação ao Defensor Rafson Ximenes, também li em seu blog na Internet[2] uma crítica contundente, como poucas vezes li, sobre a conduta de alguns Juízes de Direito. Com coragem e franqueza, o ilustre Defensor já começa seu texto provocando: “Me embrulha o estômago participar de audiências em que se julga a possibilidade de livramento condicional. Algumas perguntas que alguns magistrados fazem irritam profundamente”. Ao final, fazendo um trocadilho, refere-se à ideia de “concessão” de benefício de livramento condicional nestes termos: “E para terminar, benefício é o caramba! (a palavra certa no final era outra, mas vá lá. Vamos jogar um baralho.)”. Não preciso escrever aqui o resultado dessa mistura de caramba com baralho!
Eu não tenho como negar que também já dei muitos “conselhos”e “esporros” em presos quando da “concessão” de algum benefício. Já dei conselhos para que estudassem, frequentassem uma Igreja, procurassem um emprego, que deixassem de “mexer no alheio” e outras bobagens mais... Da mesma forma, em dias de mau humor, já dei“esporros”, ameacei de nova prisão e, como diz Rosivaldo, outras bobagens “inconfessáveis”.
Agora, vamos de Freud. Em um escrito de 1917, Freud se propõe a “descrever como o narcisismo universal dos homens, o seu amor próprio, sofreu até o presente três severos golpes por parte das pesquisas científicas”. São as feridas narcísicas da humanidade.
A primeira dessas feridas, segundo Freud, teria sido causada pelas pesquisas de Copérnico no desenvolvimento da teoria doheliocentrismo, ou seja, a terra não é o centro do universo e não passa de um pequeno planeta que gira em torno do sol. A segunda ferida teria sido causada por Darwin no desenvolvimento da teoria do evolucionismo, ou seja, o homem não tem ascendência divina, mas dos macacos. Por fim, aterceira ferida narcísica da humanidade, segundo o pretensioso Freud, teria sido causada por ele mesmo com sua teoria do inconsciente, ou seja, o homem deixa de ser o “senhor de sua própria casa” para dar lugar ao inconsciente. Assim, para Freud, “a mente não é um coisa simples; ao contrário, é uma hierarquia de instâncias superiores e subordinadas, um labirinto de impulsos que se esforçam, independentemente um do outro, no sentido da ação, correspondentes à multiplicidade de instintos e de relações com o mundo externo, muitos dos quais incompatíveis e antagônicos”. Nesse confronto entre o ego e o inconsciente, portanto, estaria explicada a diferença entre aquilo que é “mental” e o que é “consciente”, ou seja, ainda segundo as palavras de Freud, “o que está em sua mente não coincide com aquilo que você está consciente; o que acontece realmente e aquilo que você sabe, são duas coisas distintas”.[3]
Mas qual o sentido mesmo desta confissão? Pois bem, retomando nossas inspirações iniciais, primeiro temos um Juiz que nos assusta ao revelar seu rol secreto de arrependimentos; depois, um Defensor Público que expõe sua indignação contra os juízes que se imaginam poderosos ao“concederem benefícios” a pobres e excluídos e, por fim, Freud nos coloca diante do nosso narcisismo ferido por Copérnico, Darwin e por ele mesmo e nos incomoda com a afirmação de que não somos senhores de nossa própria casa/mente. Além disso, ao nos mostrar as feridas narcísicas da humanidade, Freud termina despertando nossa curiosidade na busca das nossas próprias feridas narcísicas relacionadas ao Direito[4], ou seja, até que ponto nosso narcisismo jurídico está sendo desmoronado pelos fatos históricos e pela ineficiência do Direito no papel de avalista das promessas da modernidade e de um contrato social cada vez mais restrito a uns poucos privilegiados?
Sendo assim, eu, Juiz de Direito, confesso, diante dessa crise sem fim do Direito, cada vez mais reduzido ao estudo das normas e dogmas, que me sinto como Narciso diante de um espelho quebrado; confesso,também, que ainda não consegui me desvencilhar por completo, mesmo pensando que sim, da formação dogmática e normativista do Direito que me incutiu o ensino jurídico e, por fim, confesso que ainda prevalece em meu inconsciente (senhor de minha casa), embora continue pensando que não, a ideia de que é o Juiz quem “concede benefícios” ao preso, ao contrário de lhe reconhecer como “sujeito” e lhe garantir direitos. Como prova disso, em uma de minhas últimas decisões postadas aqui no blog[5], “concedi” a liberdade provisória a um preso acusado de furto de um rádio de pilha e um aparelho de som. Por que, de outro lado, não lhe foi simplesmente “garantido” o direito à liberdade em face da inexistência das hipóteses que justificassem a sua prisão preventiva? Como se diz popularmente e verdadeiramente, “Freud explica...”
Ora, conceder é infinitamente diferente de garantir. Conceder(do latim) significa dar, permitir, facultar, outorgar; garantir (do francês), de outro lado, tem o sentido de afirmar, certificar, asseverar, tornar certo e seguro. O direito à liberdade, portanto, não é do Juiz, mas da pessoa a quem a Constituição garante esse direito. Como pode o Juiz, aliás, conceder ou dar a alguém o que não dispõe? Em consequência, quem concede tem a possibilidade de escolher ao seu livre arbítrio o que quer conceder; de outro lado, quem garante precisa fundamentar e justificar aquilo que torna como certo e seguro. Sendo assim, concordando com Lenio Streck, decidir não é sinônimo de escolher. A escolha será sempre parcial, arbitrária e discricionária; a decisão, de outro lado, implica em uma interpretação estruturada e em consonância com o Direito e, sobretudo, com a Constituição.[6]
Agora, mais aliviado, sei que está escrito em 1Jo 5,17 que “toda a iniquidade é pecado, e há pecado que não é para morte.” Eu não creio, em vista do que andei praticando como magistrado, que tivesse pecado “para morte” e sei também que a penitência proposta no fim da confissão, segundo o sacramento católico, “não é um castigo; mas antes uma expressão de alegria pelo perdão celebrado”.
Por fim, confessado o “pecado” e aceita a penitência de (i) afastar Narciso do Direito, (ii) continuar estudando e buscando um sentido para o Direito nesta quadra da história da humanidade e (iii) nunca mais imaginar que cabe ao Juiz “conceder” direitos a seu bel prazer a quem quer que seja, mas de “garanti-los”, em face da Constituição, a quem os detenha, não me sinto castigado, mas alegre pela confissão e pelo perdão. Por fim, talvez meu ego esteja mais certo do que meu inconsciente da importância de cumprir a penitência proposta, mas mesmo assim, ao procurar um rumo e sabendo que “tal coisa existe”, me conforto mais uma vez com Freud: “E se você não tem informação de algo que ocorre em sua mente, presume, confiante, que tal coisa não existe”.[7]
* Juiz de Direito, membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 15 de fevereiro de 2011.
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