Quantos sonhos não nascem na alma humana com o nascimento de uma criança ?
Quantos destinos, quantos caminhos não são possíveis de serem trilhados ?
E ficam os pais a contemplar os filhos, projetando o futuro dos rebentos, na esperança renovada dos sonhos não alcançados.
Assim olhava, orgulhoso, Manuel Corvelo para o filho recém-nascido, Artur, personagem principal do livro "A Capital", de Eça de Queirós.
O homem, que até então se desolara com a esterilidade de seu casamento, tinha agora em mãos uma semente. Uma "pequena" semente, que se desenvolveria e, fecunda, daria seus frutos no tempo devido. Ia estudar, formar-se, fazer carreira, tornar-se um grande homem. Um homem do Direito - naquela época, como é bem de ver, apenas a advocacia e a medicina podiam significar sucesso na vida. E o futuro começava hoje, por isso "com o seu respeito supersticioso pela magistratura, ainda Artur não fora batizado (...) o bom Manuel Corvelo decidira economizar com método, para mais tarde o levar a Coimbra e fazer dele um bacharel".
O avô fora, no Porto, um tabelião. O pai, estabelecido em Ovar, um escrivão de Direito.
Artur, por fim, haveria de ser Desembargador.
Assim ficava o pai a imaginar-lhe já em sua beca, como um homem célebre, também autor de um livro querido, um amante das Belas-Letras.
"Ele, por esse tempo, coitado, estaria velho: não poderia trabalhar, mas aquele serzinho que, agora, a sonhar lhe mamava no dedo, seria então um filho ilustre e bom, que, pela posição na Magistratura, lhe faria a velhice farta e pela glória nas Letras lhe tornaria o nome clássico".
E o menino crescia mesmo interessado nos livros.
Foi grande a alegria do pai
"quando notou que nada acalmava as raras perrices do Arturzinho, como folhear algum venerável infólio de antiga legislação; e sobretudo, mais tarde, quando viu que o divertimento querido do pequeno, não era rufar em tambores ou cavalgar vassouras, mas, aninhado nas saias da mãe, coser caderninhos de papel, que cobria de capas cor-de-rosa e de que acumulava coleções com a devoção de um velho bibliófilo".
Sinais de inteligência – pensava o pai.
Seguindo o conselho de amigos, que viam o bom desenvolvimento do imberbe, Manuel Corvelo mandou Artur para Coimbra, para os últimos preparatórios de Geometria e Introdução. Dessa forma, ia já se acostumando à beira do rio Mondego e à vida acadêmica. Quando entrasse para a Universidade, entraria como um soldado aguerrido e não como um recruta bisonho.
Mas, como diria Salomão em sua conhecida sabedoria, "a corrida não é dos ligeiros, nem a batalha dos poderosos, nem tampouco são os sábios os que têm alimento, nem tampouco são os entendidos os que têm riquezas (...) porque o tempo e o imprevisto sobrevêm a todos".
E foi justamente isso o que aconteceu : um imprevisto.
Numa das férias escolares de Artur, sua mãe, doente desde o inverno, morreu de uma tísica de garganta. O pai, muito afetado, teve os primeiros sintomas de uma doença de coração que em pouco tempo também o levou à morte. Artur ficou sozinho, cumprindo a descrição do rei – 'sábio sem alimento', 'entendido sem riqueza'.
Os sonhos todos se esvaindo, Coimbra apenas uma miragem.
Diante das necessidades urgentes da vida, não se fez Artur um bacharel em Direito.
Tão pouco um homem das letras. Mesmo indo posteriormente a Lisboa – onde acreditava conseguir inspiração –, não conseguiu concluir nenhuma de suas obras.
E o sonhos viraram fumaça, e toda fumaça é sonho.
Texto retirado do site migalhas.com
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