Uma decisão judicial inédita reverteu verba do fundo pecuniário - dinheiro recolhido de condenações judiciais - para quitar a casa de um pai que abandonou o emprego para pesquisar a doença rara e incurável do filho. Ele seria despejado por falta de pagamento.
A história - que lembra a do filme "Óleo de Lorenzo" (George Miller, 1982) - aconteceu em Curitiba (PR). O engenheiro mecânico Adolfo Celso Guidi, 52, deixou o cargo de gerente de uma concessionária em 2000, ao descobrir que o filho Vitor Giovani Thomaz Guidi, à época com dez anos, tinha gangliosidose GN1 tipo 2.
Em sua edição de ontem (20) o jornal Folha de S. Paulo trouxe mais e preciosos detalhes sobre o caso judicial, cujo desfecho havia sido antecipado pelo Espaço Vital em sua edição de 27 de novembro do ano passado.
"A doença começou a se manifestar quando ele tinha quatro anos. Nenhum médico no Brasil conseguiu fazer o diagnóstico. Larguei tudo e fiquei uma semana em Buenos Aires com minha família, onde diagnosticaram a Gangliosidose. Quando eu retornei para o Brasil, um médico me disse que não tinha o que fazer", afirmou Guidi à Folha.
O engenheiro, inconformado com a resposta, começou a estudar a doença na biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná. "A gangliosidose impede a reprodução de neurônios, que degeneram. Por meio de um processo homeopático, que funciona como um antídoto de veneno de cobra, a gente fornece essa enzima e o organismo trabalha", explicou o pai, que encontrou a fórmula de um medicamento para o filho em 2001.
Para alcançar esse resultado, Guidi diz que gastou, na época, cerca de US$ 80 mil dólares (cerca de R$ 149 mil atualmente) e deixou de pagar as prestações de sua casa. "Tudo saiu do meu bolso, não pude mais pagar nada e minha casa foi a leilão", afirmou.
A ação judicial da Caixa Econômica Federal, financiadora da casa, contra Guidi teve início no dia 30 de março de 2001. Depois de vários recursos, o caso caiu nas mãos - "abençoadas", segundo o pai - da juíza federal Anne Karina Costa, da Vara do Sistema Financeiro de Habitação de Curitiba.
"O caso já estava transitado em julgado e íamos fazer a liquidação, de acordo com a decisão judicial. Caso ele não pagasse o valor acordado, ele teria que sair do imóvel. Então, durante uma audiência de conciliação, após a representante da Caixa propor um acordo, ele disse que queria explicar o motivo de não ter pago a dívida e contou a história do filho dele. Falei para juntar toda a documentação e iniciar uma campanha para arrecadar dinheiro", afirmou a juíza.
A CEF reduziu a dívida de Guidi de R$ 119.500 para R$ 48.500. Mesmo assim, ele não tinha possibilidade de pagar. "A única renda que eu tenho, vem do trabalho que faço quando dá tempo, na oficina mecânica que eu montei na minha casa", disse o engenheiro.
Mãe de três filhos, sensibilizada com a história de Guidi, Anne - que já foi juíza da Vara Criminal - lembrou do fundo que a Justiça mantém com as penas pecuniárias. "Fiz uma solicitação para a juíza da 1ª Vara Criminal, Sandra Regina Soares, que é responsável pelo fundo, e para o Ministério Público Federal. O dinheiro arrecadado com as penas vão para entidades assistenciais, eu tive a ideia de inscrever Guidi como um projeto", afirmou a juíza. (Proc. nº 2001.70.00.008698-3).
Decisão inédita
Em uma decisão, que pelo conhecimento de Anne é inédita no Brasil, o Ministério Público e a Vara Criminal autorizaram que o fundo fosse utilizado para o pagamento da dívida de Guidi com a Caixa. A audiência final foi no dia 13 de novembro de 2009. "O que eu fiz foi algo que estava dentro da minha possibilidade. Eu me coloquei no lugar dele e ele optou pelo filho. Não teria como exigir dele outra atitude. Além disso, se retirássemos a casa, acabaríamos também com a única fonte de renda dele", disse a juíza.
A juíza diz esperar que a decisão se repita e sensibilize as instituições financeiras. "Foi uma decisão judicial que abre precedentes para outros casos. Espero que as instituições, um dia, possam perdoar a dívida em casos excepcionais como esse".
Guidi cuida do filho sozinho, há três anos ele se separou da mulher. "Ela ficou mais doente que meu filho e eu não percebi. Até hoje ela não saiu da depressão. Se eu pudesse voltar atrás, teria agido de outra forma, mas, na época minha decisão era salvar a vida do meu filho e eu tinha muito trabalho", afirmou Guidi.
Hoje, o engenheiro auxilia duas outras crianças que têm a mesma doença do Vitor, 21. "Com a enzima produzida na farmácia de manipulação e com a alimentação que eu pesquisei e preparo para meu filho todos os dias, ele está muito melhor. Ele não tem mais dificuldades de engolir e a musculatura não é mais contraída como antes".
Texto original no Espaço Vital de 21.6.10
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